domingo, 26 de setembro de 2010

Tragédia X Emoção

Nunca me imaginei na área do jornalismo policial. No início o que mais me incomodava era ter que ver os "presuntos" na rua. Não conseguia entender como as meninas da redação conseguiam fazê-lo com naturalidade. Perguntei para elas, e a resposta me surpreendeu mais ainda.

- Na verdade, a gente torce para chegar a tempo de ver o corpo. A história rende muito mais - me explicaram.

Na minha cabeça, isso nunca seria possível. Grande erro! Hoje em dia, ao receber a notícia de um presunto, já saio correndo para o transporte e aviso o motorista que temos que ir voando, para chegar antes da perícia.

A história rende quando pegamos o corpo estirado porque conseguimos aspas de testemunhas, familiares, culpados, fontes oficiais - indispensáveis para uma boa matéria. A emoção de ver um cadáver fica para depois, quando a cabeça para de borbulhar com perguntas que não podem ser esquecidas.

Mas as vezes a própria emoção nos trai. No costume da rotina, fui cobrir um homicídio. Havia acabado de acontecer e as únicas informações que tinha era o local do crime e a de que a vítima era um homem.

Chegando lá, o cenário de sempre. Carros de polícia cercando a área, o corpo coberto com um pano ensanguentado e curiosos olhando. Nada fora do comum. A primeira informação que obtive foi a de que no chão estava um morador de rua. Logo fiquei desapontada quando soube quem era a vítima. Moradores de rua normalmente não têm família, casa ou até mesmo nome. A matéria não ia render, temia.

Mas ao me aproximar percebi que ali havia uma grande história. Assim que desci do carro, uma mulher veio pedir para eu fazer uma matéria linda sobre ele. Logo a frente, pessoas choravam. "Você viu o que fizeram com o nosso amigo", lamentavam entre eles. Por todos os lados chegavam moradores da região para acreditar com os próprios olhos no que havia acontecido.

Conversando com as pessoas, entendi o episódio. Shaolin, como era conhecido por todos, há muito tempo morava em uma parada de ônibus da região. De dia andava pela cidade pedindo dinheiro e catando latinhas. Com suas lutas de kung-fu - daí surgiu o apelido - brincava com as crianças e era ajudado e querido pelos moradores. Ninguém se incomodava com ele - exceto um senhor de 82 anos.

Shaolin, quando bebia, gritava e cantava. O senhor ficava bravo, há tempos o ameaçava. Naquela tarde, enquanto Shaolin lutava um alegre kung-fu cambaleado no meio da rua, o senhor saiu de casa com uma peixeira escondida dentro da calça. Facilmente encontrou o morador de rua e desferiu diversos golpes contra ele. O lutador não conseguiu vencer, morreu na hora. O acusado de 82 anos teve que ser escoltado por policiais. Enfurecida, a população queria linchá-lo.

Enquanto ouvia a história daquele morador de rua, mais pessoas chegavam. Contei pelo menos umas duzentas, número que aumentava por todo o tempo que fiquei no local apurando as informações. Pessoas e mais pessoas que provavelmente largaram o trabalho para dar o último adeus a Shaolin. Até o padre da igreja mais próxima foi se despedir e abençoar com suas próprias lágrimas o corpo daquele que alegrava a comunidade com sua presença e simplicidade.

Pela primeira e única vez, voltei para o jornal com um nó na garganta. Mesmo sem conhecê-lo, Shaolin tornou-se querido por mim também. Me admirou a capacidade que teve de conquistar tantas pessoas simplesmente com brincadeiras, palhaçadas e lutas. A essência dele era ser ele mesmo. Com nada no banco e uma parada de ônibus emprestada, Shaolin conseguiu ter o mais sincero carinho de centenas de pessoas. Coisa rara hoje em dia, não?!

4 comentários:

  1. Credo. Eu to de cara que você consegue fazer esse tipo de trabalho Mamá. De fato uma estória chocante.
    A pergunta agora é, será que a lei vai ser aplicada a esse monstro assassino de 83 anos?!
    Espero mesmo que sim!
    Beijos e abraços!!!

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  2. NOSSA!! Trabalho numa redação também e jamais imaginei o que os jornalistas passavam!!!
    Parabéns pelo maravilhoso trabalho, Mamá!!!! =******

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  3. Mto bom seu texto!!! Ganhou um seguidor.

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  4. Como mentiras e tragédias rendem dinheiro. "... chão estava um morador de rua. Logo fiquei desapontada quando soube quem era a vítima. Moradores de rua... A matéria não ia render..." Ele é menos ou mais homem do que nos? Explorar a morte de uma pessoa rica rende mais que um mendigo, antes de tudo era uma Vida. Não me abalo mais, sabendo que a mídia divulga no intuito de vender mais. porque as pessoas gostam de assistir as tragédias alheias, acaba banalizando a violência. Ela tem o dever de informar. Mas repetir as mesmas cenas milhares de vezes ao dia é comércio com a tragédia alheia... Acaba prestando um des-serviço. Os repórteres são dignos de desconfiança.

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